Cicero Melo
O VERBO SITIADO
(Edições Bagaço, 1986)
DAS NAVEGAÇÕES DO NOVO
A Luiz Carlos Cavalcanti
I
Façamo-nos ao mar, aventureiros,
Que muitos são os cabos a vergar,
E a vida renovada de janeiros
Não carece de portos a arribar,
Porque sendo das horas marinheiros,
Sempre reinventando nosso mar,
Multipliquemos a vela solitária,
Que a vida só vigora quando vária.
II
Renascendo das milhas percorridas,
Sempre metamorfose, sempre nave,
Sejamos das correntes incontidas
Que modulam o peixe em ática ave,
Que fazem vivas trilhas pressentidas,
Do mistério do mar forjando a chave.
Contornemos, marujos, vis abrolhos,
Redescobrindo o mundo em novos olhos.
III
Timoneiros de chusma inane, enerve,
Descrente no bailar dos dias vãos,
Sejamo-lhes o sopro, ativa verve,
Que desova de vida as mortas mãos,
Aquele que no corpo frágil ferve
Revestindo de sins os nulos nãos.
Façamos do cansado nauta em dor
As rotas desvendar, navegador.
IV
Não navegar jamais rota abatida,
Mas sempre aquela em feto, indesvendada;
Aquela que buscas vem tecida
No profundo do ser, imaculada;
Aquela no casulo, ova contida,
Semente do amanhã, desabrochada.
Decifremos os dias no seu ovo,
Que a vida se constrói de rumo novo.
V
Sempre em febre e furor a cada instante,
Sempre redefinindo o itinerário.
Em lugar diferente e bem distante
A nau esteja em cada aniversário,
Navegando sem bússola ou sextante,
Sem astrolábios ou mapa ou calendário.
Sorvamos do vagar toda ventura:
Que só nos baste o mar por sepultura.
VI
Que de vagar a barba se embranqueça
E os revoltos cabelos virem cãs;
Importa-nos o azul sobre a cabeça,
O vento desvestindo as trilhas vãs.
Que a mente solta ao léu se fortaleça,
Permute lassas tarde por manhãs.
Que sendo estas do nauta as sãs ciências:
Não nos cubram os céus de condolências.
VII
Que a mente se arquitete em móveis ilhas,
Fecunde-lhes a forma em geometria,
Desenhe-lhes a fauna, as maravilhas,
A flora matizada em melodia,
Os córregos mutantes, livres trilhas,
Paisagem aleatória que procria.
Que se desfaz a vida no profundo,
Se o nauta tem a nave fixa ao mundo.
VIII
Que não se busque o nauta em recompensas,
Nem em seu desbravar rude aventura,
Que o sempre navegar de rotas tensas
Perfaz-lhe a honra mor que só perdura,
Iluminando a mente às noites densas,
Levando sua luz à trilha escura.
Posto que de maior que seja o feito,
Procura sempre o vulgo a ver defeito.
IX
Não sorver dos relógios o destino
De decantar o tempo eternamente,
Mas desenhar no peito o rubro sino,
Aquele que desperta a chama à gente
Cigana, em passo errante e desatino
De caminhar estrada tão clemente,
Pois, se vivemos nave solta ao léu,
Que nos bastem os vivos sob o céu.
X
Mas que nunca nos faltem sentimentos
De amar sem pejo, pena ou compaixão.
Só nos enriquecemos dos momentos
Que nossa nau desdobra o Cabo Não
Do viver, que, com todos seus tormentos,
Insano nos arrasta em aluvião.
Sejamos sempre sol de vária cor,
Contudo, em nosso mar, navegador.
NETÚNIA
A sedição do mar me traz as seivas
Dessa canção de azul e de salsugem.
Aqui, as garras do vento, glaucas, rugem
Em venéreo motim, salgadas eivas.
A sedução do mar me dá sustento
Na ternura dos olhos renascidos.
Ó luxúria de azul, fluidas libidos!
Ó aquáticas vulvas, cios de vento!
Ó talássico leito, equônea égua,
Em teu ventre fermento e forjo rotas
De lira lúdica a te amar sem tréguas!
Ó mar, seduz-me o amargo dessas notas
De anil e sal, erotizada légua
Do vôo incandescente das gaivotas!
CANÇÃO DO BÚZIO
De onde o canto do búzio? De uma vida
Que lhe deixou em ritmo o pranto fundo?
Quem encantou o búzio foi um mundo
De sonhos de matriz senil, suicida?
Quem inventou no búzio, no profundo,
O canto secular que lhe engravida,
Se não foi peixe ou seres de outra ida
Era, nem deus, arcanjos, nem o imundo?
Que paixões destilaram deste pranto
De sempre morrer e ter-se nulo,
E danado a tecer em seu casulo,
Eternamente, o repetido canto?
Quem inventou no búzio a melodia
De mar e sonho, morte e fantasia?
RETORNANDO Á ÍTACA
A nave singra os sonhos nus do mármore,
Cruzando a solidão e sempre célere.
Carrega cuidadosa o nauta célebre,
E aquele transformado em pétrea árvore.
Um lutou, desdobrou a rota bárbara
Dos dias que da vida exigem têmpera;
O outro, tecendo de ondas sua têmpora,
Transmudou-se de mundos, sempre máscara.
O primeiro se fez, de acasos, íntegro;
O segundo buscou, em rumos trôpegos,
Desvendar o inefável do seu íntimo.
Mas, ambos se perderam: mar adúltero.
Hoje, mudo, acompanho, olhos sôfregos,
Ulisses retornando ao mátrio útero.
PENÉLOPE
Retornando do mar que me emoldura,
Ancoro em teus segredos, cidadelas.
De desvelos me nutres, me aquartelas
Desnudado do nauta e de procura.
Eternamente desejada e pura,
Em ti repouso rotas, amaino velas.
Dos perigos dos mares me encastelas
Em tuas celas de amor e de ternura.
Maravilhas que, meiga, me compensas
Depois de navegar, aventureiro,
Ocasos aleatórios, vagas densas,
Retorno sempre ao cais do amor primeiro,
Para recomeçar, feridas pensas,
Outras navegações, sempre janeiro.
CAVALGADA MARINHA
Armado te revolvo: ao mar retorno
Amarado de amar, domado e márcio.
Afeitos a teus afetos ancoro árduo
A teu pélago e pés: de amor transbordo.
Astrolábios de lábios, ósculo-osco,
A teu corpo de potro louco parto;
Amado locupleto, enfesto farpo
Ardor no dorso norte do teu torso.
Almo contorno, corso colunado,
Avanço, sagitário, a teus segredos,
Arcanos de arcanjos do meu tato.
A órgia nau retorno, nérveo clima,
Alado a cavalgar em veia e velos
A curva dos teus gozos, rosa eqüina.
A ESFINGE
Se não te sinto luz, onde a candura
Das palavras bem ditas, bem formadas?
Nas minhas mãos, por ora, vejo estradas
Em traçados de cega agrimensura,
Se não te vivo em mim, vivo a loucura
Das palavras de amor incendiadas,
As taças da paixão dilaceradas
Na bacanal de sangue e de ternura.
Amor, amado amor, amargo amor,
Como dilacerar os teus mistérios,
Que me transluzem sonhos em torpor?
É muito tarde, meu amor impuro.
O sol já ilumina os cemitérios.
Voltarei amanhã, me crê, eu juro.
POEMAS DA ESCURIDÃO
(Edições Bagaço, 2001)
A TERCEIRA PELE
Procuro a carne da palavra adusta,
Aquela que insorvida se consome,
Aquela cujo selo cai à fronte
Das palavras irmãs e se incrusta
Nas pedras da razão, no verbo nômade,
No dedilhar de febres e de angústias,
No delírio senil da sombra rústica,
Longa noite de sal e medo insone.
Procuro a carne da palavra augusta,
Aquela que se eleve e se prolongue
Em mistério sutil, sedosa e onde
Repouse mar, celebração e bússola.
Procuro a carne da palavra morta
Que se aviva, me bate e me conforta.
DIÁRIO DE BORDO
Tinha dois sóis e navegara leste
do limite de um sul onde pastara
um cavalo sem cor; mas dor e peste,
outro cavalo de algas lhe inundara
as febres das mãos. Navegara norte,
as fronteiras das águas onde deitara
um mar sem meses, sem medida e morte,
e um demônio cego o transmudara
em doze cavalheiros, doze damas,
agora acomodados ante a mesa
erguida das espumas e de escamas
de um leito anterior, nunca sonhado.
Não navegara oeste, a sombra presa,
no corredor do tempo acorrentado
OS AZUIS E AS FEBRES
Outra casa, porém, o transbordara
no desenho da mão, antigo instante,
que a voz cadente de cabala errante
ainda queima os ventos que inventara.
Tinha outro filho, mas, desova rara,
vinha do sonho escuro que dormia
as proezas do pai, e a noite erguia
um cais de medo e nunca o procriara.
Desenhara três febres: dois azuis
e a linha dessecada sobre a víbora
de amor e morte se tocando nus.
A mão da sombra redesenha o porto,
o vestido do sol e sua cítara
de veneno e de mar vinoso e morto.
O VASO QUEBRADO
Tenho dentro de mim todas as mortes
e as lembranças em taças infinitas
se contorcem em sais e faces tortas,
entre sombras vinagres e vinditas.
As lembranças em laços se confortam
como anéis absurdos e insalubres.
Sangra o corte na tela decomposta,
estilhaços de mênstruo e mátrios úberes
Uma carga de morte em mim aborta
o dissoluto branco em pele negra
que, reflexo invisível, se dissolve
sem consorte, sem vórtice, sem espelho,
na paisagem proscrita do passado,
no tambor de um mundo condenado.
O TAPETE DE SOMBRAS
Mais uma noite te fere e te casula
A outra noite que dá e desampara,
Com mão de fel e nérvea navalhada,
O teu peito irredento de ternura.
Alma incolor, em desamor, desata
A fronteira da sombra e da loucura.
Somente o mofo, a medular cicuta,
Dá tessitura a teu mar de nada.
Renascida da seda dos passados,
A nave garra a solidão medonha,
A memória de infernos congelados,
Suas celas de cinzas e de sombra.
É como se, perdida a humanidade,
ladrasse no teu céu uma cidade.
TRÓIA INCENDIADA
Sempre perto do mar e porto ausente,
Sempre perto da morte e da desfeita,
Marinho, modelou-se de acidentes
Das dúbias curvas que a paixão sujeita.
A memória de Tróia ainda queima
Dentro de si a fúria indeiscente.
O antagonista ausente ou morto espreita:
É o convite à dissoluta frente.
A dor que o tempo em seu afã costura
Breve lhe bate a barba baldeada,
A face avinagrada da loucura.
Presságio prematuro ou já tardio.
Ora absorto retorna o peito à adaga,
Em olhar enfadado e mar sombrio.
SOB OS ENCANTOS DE CIRCE
Até regresso ao lar me foi negado,
Eu que vivo ancorado no teu porto.
Feiticeira do mar me tens atado
A teus cabelos de onda, vento morto.
Quando o mar abdiquei por tuas ilhas
Não pensava nas celas dos teus seios,
Levava embarcações de azedas quilhas
Que frágeis acolheram teus enleios.
Agora a lamentar-me o continente
Dos feitos que, guerreiro, lavorei,
Salgas-me os olhos de um cantar nubente
Seduções de sereia, o que me sei
É que o amor fendido vou demente
Singrando a solidão de amargo rei.
ENQUANTO ACORDAS...
Chove na moldura do tempo.
Quem ergueu a mão para criá-la?
As cortinas abraçam o vento
Um deus adormece na sala.
Um coração sempre se cala
perante a paisagem esquiva.
E a curva dos ventos abala
os caminhos da chuva viva.
A sede do deus trás a chuva.
O vento remove seus limites
de corpo colado à moldura.
Mas que desdém de chuva morta!
Um deus azul quer que o imites.
Desculpe: bateram à porta.
OS CAVALOS DA ALBA
Eu, guerreiro de um deus aqui banido,
Nesta cela de sonhos acidulada
Combato os dias vãos com rubra espada,
Cavalgando corcéis de aceso olvido.
Renasço sempre ao sul da madrugada
Meus cavalos de luz de um sol partido,
Quando a noite decai sem um gemido
Forjando do inimigo a face alada.
Guerreio sempre ao claro a fera esquiva,
Aquela cuja garra a morte imana
Em sal e sangue, sândalo e saliva.
Mas é de acontecer, enquanto se ama
Que, guerreiro, me quede a adaga ativa
Quando vibrante o coração me inflama.
A TORRE INCONSÚTIL
Era a casa de Jorge frente à torre
Onde morava um deus adormecido.
Que luxúria de gesso e tinta podre,
Um sabor de poema sempre lido!
Era a torre pousada sobre a sala
Onde restava um deus - nunca acordou.
O sono que o cobria era cabala:
Inconsistente e crua se criou.
Era a torre de Jorge frente à minha
No jogo do xadrez que à mão impele
A dupla dor de combater sozinha.
Era do Jorge insone a torre imbele
Que nunca a se exaurir, sempre continha
Dois Mundaús caindo sobre a pele.
OS ANÉIS DO SONO
Serpentes de cavalos
entoam em teu ouvido
e apunhalam o olho,
o lírio da fenda.
Agora não dormiste.
Uma fatia de tempo
transmudaste em pão,
a íris do gozo.
Além das montanhas,
as casas coloridas
dispostas na estante,
uma coroa de lagos.
Antigamente, a antiga amante,
colocava flores no teu túmulo.
Ícaro, sempre náufrago,
sonhavas pássaros
sob um sol de cristal e tempestade.
NATAL DEPOIS
Seu José toma cachaça,
Madona Maria esmola
e Jesus, bem pequenino,
pelas calçadas se esfola,
com seus olhos de assassino,
cheirando os sonhos de cola.
MATER ANTICA
Era marinho e repousava o tempo.
A esposa era má, o filho incréu.
Quando um deus ascendia sob o vento,
a mãe, marinha, o mantinha ilhéu.
Outra mãe porém o folheava,
que mães são mãos presentes, e segredos.
Nas entranhas dizia que matava
a devoluta carne sem os dedos
que a mãe mais remota acarinhava.
O QUINTO NARIZ DA BESTA
Acidentalmente juntos,
as bombas criam digitais
nas retinas.
Logo mais abaixo,
há rios
e navios voltando do inferno.
O GOLEM
Guardo o poema da Criação
E as faces dos deuses
Em minha memória de argila
E nudez primogênita.
O primeiro vento deu-me o espaço,
com corpos celestiais,
e uma casa.
O segundo, o tempo e o nada.
ECLIPSE
Ultrapassado o ponto de retorno,
outro rosto se purga no soturno
redesenhar do morto.
Amargo anoitecer para o expurgo
a face turva e posta a farsa espelha
o dessangrar da faca.
O lobo oculta o lar enquanto sombra.
Há sempre mais um ponto no repouso
onde se tomba.
O Poema da Danação
(Edições Bagaço, 2006)
(O vôo)
Entremos neste espelho e neste jogo,
Nestas linhas de sono que nos guiam.
Tiremos nossos véus, vamos ao gozo
Sedento desta escura harmonia.
São tantos estes sons e tão intensos.
Canta um menino expulso do seu leito
São tantas estas linhas às mãos defensas.
Mergulhemos sem medo nesse estreito
Entre céu e inferno, gêmeos complacentes,
O pênis de Deus vagando sobre as águas;
As vaginas do caos a receber solenes
Os sons da morte em novo desatino
E úlceras de palavra que deságuam.
Mergulhemos, menino, em teu destino.
Porque somos meninos, mergulhemos
Nestas curvas e úteros proibidos,
Porque somos sozinhos, sóis extremos,
Menino, mergulhemos, decaídos!
Mergulhemos sem pejo neste escuro,
Com pústulas sagradas e salgadas,
Mergulhemos, menino, em sonho curvo,
As asas turvas, mãos rudes renegadas.
Mergulhemos, menino, tão distante,
Onde fome de febre, ferro e laços
Se perdem num anel de diamante.
Mergulhemos, menino, o mal materno,
Que a serpente decanta como amante
Entre as portas noturnas deste inferno.
(A primeira fala)
E assim descobrimos o ponto morto
Do tempo ilhado em curvas e negro uivo.
Não há nada ordenado, tudo esboço.
Só a serpente espreita-se no escuro.
Nasceu uma mulher dessa cabala,
Desta mesma matéria que nos molda.
Detinha sua boca a voz sagrada
E proibida, mas de inversa roda
Gritou aos céus o nome que, falado,
Pode acordar o deus nunca desperto,
Toda sua crueldade e seu reinado.
Deram-lhe a solidão, o fecho eterno.
Decomposta em si mesmo, o ser danado
Abre o céu da serpente e nosso inferno
Abre céu do vácuo e a pele inexistente,
Do ser embrionário inda menino
Na moldura viscosa da serpente.
Doce abandono cego e sem destino.
Por ora, reina o fogo na montanha
Das águas que proferem a sentença
Ao deus insepulto em ova estranha
E no sêmen futuro da descrença.
Água seca, palavra seca e sede,
Vagina infantil, cloaca enorme,
É mãe sinistra que desenha a rede.
Neste momento incolor da água informe,
Uma muralha de luz uma parede,
Não deixa despertar o deus que dorme.
Um deus dorme, portanto, neste vinho,
Nesta paisagem, folhas e maduro
Fruto caído sobre o solo impuro.
A produção primeira, o casto linho.
O verme baixo a terra enlameada,
Na textura do tempo, na semente,
Sopro primeiro sobre o solo ardente,
Se transforma nas curvas desta estrada
Em que destilas o vinho do teu rosto,
Em que sobes do sonho para a vida.
E na escada subindo ou na descida,
A cada passo errado estás deposto.
O fundo é mais distante, velho amigo,
Se nem um deus de sombra andar contigo.
(A primeira canção de Caim)
Vendo em mim mesmo o meu contrário,
Erguer-me as armas como um serafim.
Cansado do combate, agora agrário,
Revestindo de sangue meu jardim,
Só quero o dormir dos condenados,
Em terra escura, junto ao pó do irmão.
Apagados desta terra e vindimados
Por uma mão tirana e sem paixão.
Ainda nem dormira a minha espada
Do sangue dos que ferem minha casa
Quando uma voz descendo de uma escada
De sangue cintilante e voz em brasa
De pombos afogados me recordam
Os ossos dos meus medos. Meu irmão
Com rendeiras do tempo já me bordam
Coleante e sem sombras pelo chão.
Desperto o pesadelo, em nuvem vejo
Leviatã ascendendo desonesto,
E sempre escondido no desejo
Da eterna maré do grande incesto
Entre deuses e homens sob vinho.
E vomita curvas e nos afasta
Em separados orbes e torvelinho
Do tempo que assassina e nos arrasta.
Combato Leviatã no labirinto,
Recantos tortos desta escura guerra.
Até que um sol de fogo, fel e absinto
Com o sangue de Elias queime a Terra.
(Os mortos em tua sola)
Há em cada ser humano um assassino latente.
Em qualquer vão momento podes escorregar
No sangue de tua mãe ou de teu pai degolados
Por tuas víboras, jacentes em ti e represadas.
Há em cada ser humano um arcanjo decepado
Pelas guilhotinas dos sonhos. Nunca sonhes.
Mantém para sempre os olhos escancarados:
Um morto pode estar envolto em teu casaco.
Um morto te espreita no banho do chuveiro.
Cada gota que te molha o corpo te faz morto,
E ao fazeres a barba, há um morto no espelho;
E afogados no quadro em que contemplas um porto.
Os mortos estão nos invadindo, uma epidemia
De mortos está saindo dos seus túmulos fétidos.
Os mortos estão saindo, porém, transfigurados,
De modo que não sabes quem são teus convidados.
Os mortos estão entre nós e nos abraçam amigos,
Como velhos conhecidos do colégio ou do trabalho.
Bebem cerveja conosco e nos lembram velhas canções.
Não há como identificar um morto, senão se vendo
No espelho. Tenta uma careta e assanha os cabelos,
Cruza tuas mãos magras, os dedos de cigarro, vê
A cor das pupilas, estica o rosto e verifica, então,
Se não acabaste de sair, deambulando, de um caixão.
(A segunda canção de Caim)
O deus que visitava não me escuta,
Nem sua sombra mais me dá campanha.
A sua falta o peito inteiro enluta
E vive desolado em terra estranha.
A cabeça dessangrada de um menino,
Procura pelo deus dentro da entranha
Nervosa e sepulcral de um assassino.
O deus que visitava não me escuta,
Embora lhe prepare o melhor vinho,
Destilado do sangue e da labuta
Da terra que domei sempre sozinho.
A marca que me deu em proteção,
O selo que me afasta do caminho,
É a marca de Abel, meu morto irmão.
O deus que visitava não me escuta,
Acendo-lhe fogueira, fumo a planta,
E os sentidos se tornam massa bruta,
Como a que dera vida e a suplanta.
Mas, o deus não a lê, creio que não.
Nem se importa com o sangue desta manta,
De um assassino pedindo seu perdão.
O deus que visitava não me escuta,
O deus que me seduz perdeu a escala.
Decerto os céus preparam outra luta
Para cortar-me a língua e sua fala,
Para negar em mil o meu perdão,
Como mil vermes comem uma fruta,
Eles irão comer essa paixão.
O deus que visitava não me escuta,
E continuo vagando com a eterna
Alma despedaçada e prostituta.
Assim, me sobrevive a dor fraterna,
Conduzindo no peito o sangue irmão,
Correndo noutra veia, veia externa,
Como se fosse um duplo coração.
(O anjo)
Hoje um homem foi assassinado por um anjo.
O seu único pecado foi voar dentro de um sonho.
E era um sonho tão tolo, um sonho de flores
E paisagens pacíficas onde repousavam irmãos
Um cordeiro sem lã e um leão. Era o resgate
A ser pago ao tirano, sob fogo, pela multidão.
Um menino foi assassinado hoje dentro de mim.
Erguia papagaios e brincava grandes viagens,
Como crescer sempre em vertical neste jardim.
Hoje um anjo suicidou-se com sua espada de fogo.
Não havia mais sentido em ser guarda do vazio.
Olhava a árvore da vida murcha e se via morrer
Sem companheiros, sem gritos, de feras e querubins.
Os homens agora copulavam e se reproduziam em vão.
Sem qualquer proteção vinda dos céus, estavam pois
Libertos e nus e viam a genitália e viam a extensão
Do seus corpos de carne mortal, porém prazerosa,
Como as pétalas sedutoras e rubras de uma rosa.
(O pesadelo)
No fosso de dejetos, a parede
Pesada de cimento e água podre
Do rio sob o mundo, sob a torre,
A cabeça do cadáver em degredo
Sobe e desce das águas devorando
Estrumes ressecados, carne mole.
Tudo que desce neste rio nefando,
A cabeça do cadáver agora engole.
Engole e rasga a carne macerada
Dos ossos dos seus dedos, mosca informe.
E a cabeça do sonho desolada
O faz sonhar de amor e depois dorme.
E dentro deste sonho uma paixão
O desmembra, medonho, a outra porta
Tecida de outras portas, e um caixão
Onde devorará sua mãe morta.
(Mater ludica)
Mergulhemos, menino, mergulhemos
Neste rio Mundaú, entre as pedras.
A Pedra de Bico e a do Afogado engolem,
Puxam nossos cabelos como uma sereia,
E nadamos no escuro das águas da vida,
Até chegar à confortável margem
E descansar nas coxas nuas e roliças
De nossas mães sonolentas e nossa imagem.
As coxas das mães nos dão retorno
Ao antigo rio no seio se compondo.
Para aquela misteriosa porta da vida,
Com que sempre sonhamos, quando
Saímos daquelas águas de pele macia
Para as águas dilaceradas pelos ventos,
E nossas mães nos aqueciam os dedos
No mais sagrados dos seus aposentos.
De minha mãe ainda guardo o cheiro antigo.
Quando chove e há relâmpagos e trovões.
Enrolo-me dos pés até a cabeça e sinto
O seu braço macio afugentando o medo.
A sua perna grossa sobre o meu corpo,
O regaço dos seus seios, cheios e fartos
Me faziam sonhar em outros rios, quando
Crescido retornasse, aventureiro, ás águas.
Era a recompensa por ter vindo de um sonho
Dela sozinha, pois os sonhos se dividem.
Nenhum homem a conheceu, nem um anjo,
Como acontece nas antigas escrituras.
Nenhum deus a tocou, já que partiram.
Nenhum homem a tocou, pois estão mortos.
Foi numa noite qualquer em que chovia
Que minha mãe sonhava e eu nascia,
Mas era tudo a semente das águas do rio
Em que nos banhávamos como peixes, nus,
Sem as escamas cortantes doutros peixes.
Minha mãe tinha a pele macia e tão suave
Que até chorava umas estranhas lágrimas
Que descia do seio em amoroso enfarto.
E chorava, menino, rápido, que a secasse
Com a minha língua infantil de um lagarto,
(A mão sinistra)
Do Alto do Zé do Pinho
Desce, correndo, um menino
Com uma pistola na mão.
É um menino barrigudo,
Com lombriga, ameba e mudo.
Tem um revólver na mão.
Do Alto do Zé do Pinho
Desce, matando, um menino
Com uma pistola na mão.
Da mãe não teve carinho,
É filho deste vizinho,
Ou do outro, em multidão.
Do alto do Zé do Pinho,
Desce, chorando, um menino;
Dez anos e sem compaixão.
Na língua a fala escondida.
Na arma, o vento da vida
De lhe quem disser um não.
Ao Alto do Zé do Pinho,
Retorna morto um menino,
Embrulhado em papelão.
Agora, sim, tem linhagem
Daqueles cuja linguagem
Fôra um revólver na mão.
(Hoje choveu, mas não esteve triste)
Hoje choveu, mas não esteve triste.
Olhava a rua assassinada e suja.
Lembrava-lhe o menino que resiste
Em não crescer no tempo que enferruja.
Lembrava-lhe o menino prematuro
Que ante o caule do tempo tão interno,
Brincava de marinho atrás do muro:
Um mundo desenhado no caderno.
Desenhara, entretanto, bons navios,
Tecidos de papel e mente afora,
Se compondo de chuvas e de rios.
Hoje choveu, mas não esteve triste.
Cresceu dentro de si um deus que chora,
E o seu barco levou tudo que existe.
Levou primeiro o pai que nunca o vira,
E depois sua mãe que sempre amara.
O irmão que tinha deus assassinara
Com as mãos do outro irmão; o mundo gira
Perdido no seu eixo, agora a chuva
Está matando a terra e seu rebento.
Águas sobem além do firmamento.
O barco de papel à mão segura
Conduz para o seu grande coração
Todos os sem pecados e animais
Marcados pelos deuses, com sinais,
E daqueles caídos em danação.
E daqueles queimando os seus cabelos,
E daqueles rasgando o peito em vão,
E daqueles perdidos em pesadelos,
E daqueles comendo o coração,
E daqueles sedentos de serpente,
E daqueles danados sem paixão,
E daqueles perdidos na semente,
E daqueles comendo a própria mão,
E daqueles morrendo à mão mesquinha,
E daqueles com dedo sempre em riste,
E daqueles que a fome desalinha,
E a saída, parece, nunca existe.
E o barco de papel vai navegando.
Como brincar num mundo se afogando?
(Filhos nossos)
Os filhos amadurecem os pais.
Amadurecem,
Amadurecem,
Até que os apodrecem.
(Os mortos)
Agora todos mortos vão dormindo,
Diretamente para minha cama.
Deitam-se com seu sono terno, infindo,
Escondem a carcaça em meu pijama.
Dão-me todos os sonhos, sonhos idos.
Os sonhos que teceram sua trama.
Os meus sonhos dos mortos esquecidos
Dormem profundamente em minha cama,
Que não sei se estou vivo. Quero a vida!
Quando outros mortos tentam dar conforto,
Jogo o tempo na mente distraída,
Mas, uma voz me diz: o mundo é morto!
Afogados me ofertam água e vento,
Suicidas me dão armas e outra asa.
Alado, em sonho, mudo o pensamento,
Num turbilhão soergo a minha casa
Mas esta casa não descarta um morto.
Os mortos nunca dormem, são serenos,
Levanto-me da cama - sem um porto.
Os mortos aos seus mortos cederemos.
Retorno ao quarto: abrindo a porta, atino
Intimidade pura e tão discreta:
Cantava meu avô para um menino
A canção de morrer sendo poeta.
(A cidade dos homens)
Esta cidade foi imenso matadouro.
E, de cabeças baixas, fomos como gado
Para a demência, todos. Ora, só ruínas
Revestem nosso sangue em cal e ervas mortas.
As plantas ressequidas trazem a saliva
Gosmenta dos tiranos, seus galhos dessangram
O olhar do visitante, mas, somente as cinzas
Dos mortos e seus gritos de terror laceram
Nossas frontes, sem eco, fechadas em nós
Cegos: ninguém desata; a mente muda esfola
O brilho obscuro da paisagem, o machado
Permanece amolado e nu para a degola.
terça-feira, 24 de março de 2009
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